No Uber, histórias inacreditáveis de um mundo paralelo bolsonarista
Marido tenta impedir ida a ato golpista e é acusado de cárcere
Era véspera daquele fatídico domingo em que bolsonaristas vestidos de verde e amarelo tomariam a Avenida Paulista, numa manifestação a favor do seu líder maior, o ex-presidente inelegível suspeito de planejar um golpe de Estado e que, ao que tudo indica, será preso muito em breve.
Após um samba na região central de São Paulo, pegamos um carro de aplicativo para retornar ao hotel e descansar. Deixo claro, desde já, que não eu estava na capital paulista para ir a tal manifestação, “deusmelivre”; nem exclusivamente para o samba, mas, sim, por motivos profissionais.
Pois então. Percebendo o clima tenso e polarizado em que vivemos, eu nunca (nunca mesmo) puxo conversa sobre política com motoristas de aplicativo. Afinal, pode ser arriscado. Mas naquele sábado, dia 24, quem quis conversar mesmo foi o simpático senhor que nos levava de volta à Consolação.
Já nos seus sessenta e poucos anos, ele me contava que a insanidade que parece dominar o Brasil - onde pessoas vivem num submundo paralelo regado a fakenews e a discursos de ódio - havia assolado de vez os seus amigos próximos e a família, incluindo a esposa com quem vive há 20 (20!) anos.
Jair (nome fictício, já que não quero expô-lo e muito menos viabilizar sua identificação) me dizia que, às vésperas da invasão criminosa aos prédios dos três Poderes, em Brasília, ele vivenciou uma situação inusitada: sua mulher lhe pediu que, de carro, fossem até a capital para acompanhar a balbúrdia.
Ele me dizia que se negou a tomar o ato insano, e eles discutiram (não tenho mais detalhes e o outro lado da história porque, felizmente, não precisei entrevistar a bolsonarista para escrever essa crônica). Mas, então: discutiram, ele se negou a fazer a tal viagem e a esposa, chorando, foi para o quarto.
Instantes depois, me conta o motorista, a Polícia bate na sua porta, para apurar uma denúncia de que ele estaria mantendo a esposa em cárcere privado, impossibilitando que ela, democrata, viajasse até Brasília para apoiar seu líder. A denúncia, pasmem, teria sido feita pela própria mulher, indignada.
Resolvido o problema e esclarecido que focinho de porco não era de fato tomada, os ânimos se acalmaram: Jair (não o ex-presidente fascista, mas o motorista entristecido) se propôs a levar a esposa, naquele início de 2023, até o local de onde sairiam as caravanas rumo a Brasília, para a manifestação.
Para felicidade dela, que estaria possivelmente presa, hoje, se tivesse viajado, não havia mais espaço nos ônibus. E ela seguiu chorando, em São Paulo mesmo. Mas, conta-me Jair, a esposa preferia ter viajado, ter sido presa para, posteriormente, processar o Estado, esse Estado truculento e opressor.
Conto tudo isso para dizer que a multidão que foi até a Paulista, no domingo passado, deve viver nesse mesmo mundo paralelo que vive até hoje a esposa do motorista de Uber. Um mundo onde fatos já não importam mais, apenas opiniões e ideologias (afinal, todo mundo quer um líder pra chamar de seu).
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